Literatura Norte-Americana

O Despertar

Devorei “O Despertar” (1899), de Kate Chopin, numa tarde. Há muito tempo que um livro não me agarrava desta forma.

A primeira vez que ouvi falar de “O Despertar” foi num antigo livro de cabeceira que tenho sobre as grandes heroínas da literatura. Ao lado de nomes como Madame Bovary, Ana dos cabelos ruivos, Jane Eyre ou Anna Karenina, encontrava-se o de Edna Pontellier, protagonista de um romance que na sua época provocou escândalo e do qual eu nunca ouvira falar. Decidi então que tinha de o ler e encontrei-o, por acaso, a preço de saldo numa velha edição da Relógio d’Água na Feira do Livro.

Edna é uma jovem mulher casada e com dois filhos que vive em Nova Orleães. Apesar de ter um casamento satisfatório, uma posição social que lhe permite completo desafogo económico e uma vida social interessante, Edna não se sente feliz porque a sua natureza livre e independente não se coaduna com as convenções que, na viragem do século, vingavam no sul dos Estados Unidos. Durante umas férias de verão junto ao mar, Edna conhece um jovem e os dois apaixonam-se.

Gostei muito deste livro, contudo, devo dizer que me recordou a história de “Madame Bovary” (1856), de Flaubert. Não nos podemos esquecer que a segunda metade do século XIX teve a figura feminina e os seus despertares como uma das temáticas mais importantes e em voga, como tive oportunidade de referir acima. O que é espantoso neste caso, foi o facto de este livro em particular ter sido escrito por uma mulher.

A escrita de Kate Chopin é clara, simples e prende-nos desde a primeira página. O seu ritmo é idóneo, o ambiente da história está muito bem elaborado e as personagens são vivas e bem construídas. Todavia, o melhor é o final. Apesar de não ser inteiramente original é o desenlace perfeito para a coerência que Edna apresenta ao longo do livro. Recomendo.

Literatura Norte-Americana

O Último Magnate

Um dos últimos livros que li o ano passado foi “O Último Magnate” (1941), de Francis Scott Fitzgerald. Pelo prefácio desta edição, fiquei a saber que se trata de um livro inacabado e publicado postumamente. Apesar de me sentir um pouco desencorajada, a obra termina com as notas do autor que nos revelam como teria decorrido o resto da história. E que história teria sido!

A acção decorre nos anos 30 do séc. XX, no seio da indústria cinematográfica americana. Monroe Stahr é um importante executivo de Hollywood, com o toque de Midas para o negócio e para os êxitos de bilheteira. Cecelia, a filha de um produtor influente, conhece-o a bordo de um avião e apaixona-se de imediato por ele. No entanto, Stahr não consegue esquecer a sua mulher falecida, e, por um acaso do destino, ao ver no set de filmagens uma figurante bastante parecida com ela, não descansa até a encontrar e conhecer. No início, Kathleen rejeita os seus avanços, todavia, com o passar do tempo, os dois estabelecem uma bonita relação. O que desconhecem é que tanto um como outro escondem um segredo que inevitavelmente mudará tudo.

Gostei muito de “O Último Magnate”. Tal como no livro “O Grande Gatsby”(1925), a escrita de Fitzgerald é fluída, moderna e concisa, porém cheia de sentimentalismo (no bom sentido da palavra). A vida de Stahr parece perfeita, e ele tem tudo para singrar, mas o seu segredo pessoal, os dramas da profissão e um certo descontentamento que se vivia no período pós Crash da bolsa e pré II Guerra Mundial fazem com que o sonho americano seja mais difícil de concretizar. Acredita-se que a personagem foi inspirada em Irving Thalberg, um jovem e importante executivo da MGM (casado com a atriz Norma Shearer) que nos deu filmes como “Ben-Hur” ou “Revolta na Bounty”, e com quem o autor privou várias vezes.

Creio que se Fitzgerald tivesse terminado “O Último Magnate” ter-nos-ia deixado uma obra tão significativa como “O Grande Gatsby”. Foi uma pena, realmente. Contudo, fica a intenção e as notas que nos dizem como teria gostado de a escrever. Uma história bonita e dramática, ideal para quem gosta do começo hegemónico dos EUA e de Hollywood. Recomendo.

Literatura Norte-Americana

Butcher’s Crossing

Há um par de anos, após ter lido “Stoner” (1965), do escritor americano, recentemente descoberto, John Williams, soube que um dia leria os outros dois livros publicados pelo autor: “Butcher’s Crossing” (1960) e “Augustus” (1972). Comecei pelo primeiro, um western muito masculino, mas também uma história de crescimento e aventura.

A ação de “Butcher’s Crossing” ocorre em 1870 numa pequena vila chamada Butcher’s Crossing. O jovem Will Andrews fartou-se do curso que estava a tirar em Harvard e decidiu escapulir-se para esta zona rural de modo a viver uma aventura. Por intermédio de um contacto do pai conhece Miller, um caçador obcecado por bisontes que anseia desesperadamente por uma última caçada.

É assim que se desencadeia a história. Toda ela é passada nas montanhas onde quatro homens procuram bisontes, tentam caçá-los, sobreviver ao frio e aos feitios diferentes uns dos outros. Apesar de lermos sobre uma aventura e uma história de superação, o livro é bastante lento. Williams leva o seu tempo a desenvolver a ação, o que por um lado é bom porque envolve o leitor, mas, por outro, acaba por tornar tudo muito previsível.

Gostei do livro mas não me encantou. É uma boa opção para quem gosta de histórias invernais ou de westerns. Para além disso está muitíssimo bem escrito, sendo a narrativa o ponto forte de Williams. Ao lê-lo pensei várias vezes que daria um excelente filme, e, pelo que vi online, parece que será realmente levado ao grande ecrã, com Nicolas Cage como Miller, o que me desmotiva grandemente. Sempre pensei na personagem como sendo uma espécie de Glukov (Alex Ferns) da série de tv “Chernobyl”.

Com os dois primeiros livros de John Williams lidos resta-me agora “Augustus”, que em 1972 ganhou o National Book Award. Lê-lo-ei, com certeza, mas não será para já. Não será para já.

Literatura Norte-Americana

The Call Of The Wild

O último livro que li foi The Call Of The Wild (1903), de Jack London. Trata-se de uma pequena novela sobre um cão chamado Buck, que é subitamente raptado de sua casa para servir de cão condutor em Klondike, uma região inóspita do Alasca onde se tinham descoberto minas de ouro. Esta famosa febre do ouro fez com que muita gente tentasse a sua sorte e seguisse caminho para uma vida difícil e arriscada onde praticamente só os mais fortes e aptos sobreviviam. E é exatamente este o tema de The Call Of The Wild.

Buck é uma cria de São Bernardo cruzado com Collie e vive em casa de um juiz californiano. Não é um cão de família, mas é bem tratado e não sente falta de nada. Contudo, após o seu rapto, Buck vai encontrar-se nas piores das condições. Todos os homens o maltratam, fazem-no andar quilómetros a fio no meio de temporais e a escassez de comida é uma realidade de todos os dias. Para piorar, os outros cães não o aceitam e ele vê-se obrigado a lutar pelo seu lugar, assumindo a liderança da matilha. São todas estas privações que vão fazer com que o seu lado selvagem venha ao de cima. Ele sente-se cada mais um animal ligado à natureza.

Gostei muito desta história. Jack London é rude e cru na sua escrita. Muito frontal e violento. Conta as coisas como elas são, como a natureza as fez e as faz funcionar. A natureza dos animais e dos homens, todos em conexão num dos lugares mais primitivos e inabitáveis do planeta. É a lei do mais forte, do mais cruel e do mais selvagem.

Nesta bonita edição da Penguin English Library em particular, The Call Of The Wild é seguido de três contos soberbos de London. Gostei particularmente do último, Love of Life (1907), cujas imagens grotescas ainda me assaltam a mente. Gostaria agora de ler White Fang (1906) pelo mesmo autor, uma história contada ao contrário: um cão selvagem que se deixa domar. Parece interessante, não acham?

Literatura Norte-Americana

Washington Square e A Herdeira

O fim-de-semana passado vi o filme “A Herdeira” (1947), de William Wyler (Ben-Hur; The Children’s Hour) com os maravilhosos Olivia de Havilland e Montgomery Clift. Não sabia nada sobre a história, que é como gosto de escolher os filmes que vejo e os livros que leio, pelo que fiquei muito surpreendida ao ver que se tratava de uma adaptação da obra “Washington Square”(1888), de Henry James.

Eu já tinha lido este livro há alguns anos, mas lembrava-me pouco da história, pelo que após o visionamento do filme decidi lê-lo outra vez. “Washington Square” narra o romance entre Catherine Sloper, uma rapariga pouco atraente, desajustada e rica que vive com o pai, Dr. Sloper, médico cirurgião bem sucedido, e Morris Townsend, um jovem cavalheiro bem parecido, pobre e sem recursos. Catherine não acredita na sua sorte quando se vê alvo do interesse de Morris, e o seu pai desconfia logo do rapaz e diz à filha que ele só a quer por causa do dinheiro. A partir daqui, estas três personagens, juntamente com Mrs. Penniman, tia de Catherine e grande impulsionadora do namoro, vão confrontar-se ao longo do tempo para se defenderem umas das outras.

Enquanto no livro as razões do interesse de Morris são bastante explícitas, no filme, que é muito fiel ao texto, o espectador é deixado na penumbra. Todas as personagens dão o seu ponto de vista e são guiadas pelos seus interesses e fraquezas, e, apesar de parecer não existir personagem principal, é sem dúvida Catherine que conhece a maior transformação e que dita o desenrolar da história e o desenlace da mesma.

Gostei muito do livro e do filme. Como referi, são os dois muito parecidos e, de certa forma, complementares. Henry James escreve maravilhosamente enquanto aborda um tema diferente e mais original do que é costume, e Olivia de Havilland e Montgomery Clift são divinos no ecrã (ela inclusive ganhou o seu segundo Óscar de melhor actriz com esta longa-metragem). Recomendo.

Literatura Norte-Americana

Redes Sociais

Nunca fui muito de redes sociais. Tive contas privadas no Facebook e no Instagram onde publicava uma ou outra fotografia, mas nunca perdi muito tempo com a minha vida digital, nem com a dos meus amigos. Até conhecer o Booktube e o Bookstagram.

Quando me apercebi de que existiam estas duas comunidades de leitores que publicam sobre os seus livros preferidos, fiquei encantada. Podia finalmente “falar” com pessoas cujos interesses eram iguais ao meus, partilhar opiniões, descobrir novos autores e, quem sabe, até fazer alguns amigos. Decidi, então, criar uma segunda conta (pública) no Instagram dedicada unicamente às minhas leituras. No início foi tudo muito subtil. Publicava poucas vezes (sempre que lia um livro), tinha poucos seguidores, e era capaz de passar dias sem entrar na aplicação.

Comecei a notar uma diferença nos meus hábitos quando surgiu a funcionalidade das stories, e quando comecei a seguir e a ser seguida por pessoas com gostos semelhantes aos meus. A partir daí, a importância que passei a dar à minha conta do Bookstagram foi aumentando. Tal como tudo o resto. O meu número de seguidores aumentou, o meu tempo passado na aplicação aumentou, o meu dinheiro gasto em livros aumentou, a minha TBR aumentou. O que não parecia aumentar, no entanto, era o tempo que eu dedicava à leitura…

Inevitavelmente, estes hábitos pioraram com a pandemia. Como tivemos de passar dois confinamentos com crianças pequenas em casa, as redes sociais eram uma espécie de escape para o difícil período que estávamos a viver. Era bom poder ver os outros a ler e a aproveitar o tempo (confinados ou não), e saber que ainda havia uma réstia de vida normal lá fora. E como estas vidas parecem interessantíssimas, as minhas compras online dispararam ao ponto de eu ter vergonha de mencionar o número de livros que tenho por ler nas minhas estantes. Alguns deles provavelmente não teria comprado caso não tivesse tido um momento de fraqueza e comparação.

Fraqueza. Era precisamente isso que eu sentia. Sentia-me fraca perante o meu telefone e perante os outros. Parecia incapaz de passar cinco minutos sem ir ao Instagram. A primeira coisa que fazia ao acordar era verificar o Instagram e a última coisa que fazia ao deitar era verificar o Instagram. Às vezes até me zangava com os meus filhos por eles não me darem uns minutos para publicar qualquer coisa no Instagram… E não parecia certo. Não parecia certo. E eu refletia: a minha vida não é desinteressante ao ponto de eu estar sempre a querer fugir dela. E que me interessa a vida dos outros? Que me interessa o que os outros lêem? Pessoas com quem eu nunca falei, que nunca vi, e que provavelmente nunca chegarei a conhecer? Pessoas que só interagem comigo porque fazem like numa fotografia ou vêem a minha story… Nem sequer comentam. É para as agradar que tenho Instagram? Eu nem simpatizo com o Sr. Zuckerberg… Perdia noites nisto.

Tais exames de consciência começaram a fazer com que eu pensasse em afastar-me das redes sociais. Mas não sabia como, o que me assustava. Decidi então comprar dois livros: Ten Arguments For Deleting Your Social Media Accounts Right Now (2018), de Jaron Lanier; e Digital Minimalism (2019), de Cal Newport. O primeiro explica como funcionam as redes sociais e os algoritmos que nos viciam, o segundo abre as portas para um novo conceito chamado minimalismo digital, ensinando não só a usar as redes sociais de forma mais responsável e consciente, como também a substitui-las por actividades mais benéficas e significativas. Creio que um complementa o outro.

Após estas leituras, e a visualização de testemunhos e documentários como o The Social Dilemma (2020), da Netflix (disponível no Youtube), a minha decisão foi ganhando forma. Primeiro apaguei a aplicação do telefone e depois fui pensando em apagar definitivamente as minhas contas. O meu objetivo era voltar a uma vida não digital. Uma vida mais autêntica, em que o meu primeiro pensamento ao entrar numa livraria ou após ler um livro, não fosse publicá-lo imediatamente na Internet. Queria voltar a fazer as coisas por mim e para mim. Queria ser eu a descobrir novos livros, queria ser eu a ler ao meu ritmo, queria ser eu a dar a aprovação sem me importar se os outros gostam ou não.

Mas não é fácil. Principalmente para quem está habituado a ter um ecrã sempre por perto. Nos primeiros dias o silêncio é uma benção, mas, depois, vamos sentindo falta do que gostávamos, e é nesse momento que temos de ser fortes. Muito fortes. Temos de voltar a pensar nas razões que nos levaram a apagar as contas e naquilo que valorizamos na nossa “nova” vida. A calma, a autenticidade, a genuinidade, a reserva, o silêncio, a empatia. Estarmos presentes no momento e termos consciência disso. Fazermos as coisas para nós e não para aprovação alheia. Tirarmos uma fotografia para mais tarde recordar, e não para mostrar ao mundo. Apreciar todos os sítios pelos quais passamos, ainda que não sejam “Instagramáveis.” Acordar e ir às apalpadelas até à casa de banho, apagar a luz após lermos o nosso livro. Na minha opinião, tudo isto supera a vaidade e a curiosidade que sentimos por pessoas com quem simpatizamos, mas que nunca chegaremos a conhecer.

Por isso, e também após a leitura destes dois livros que recomendo vivamente a todos os que tenham redes sociais, posso dizer que estou novamente a tentar não ser de redes sociais (só o Goodreads que não vicia ninguém). Apaguei as minhas contas, mas só daqui a um mês será definitivo. Já não quero perder tempo com vidas digitais, anúncios ou páginas sugeridas. Quero dar um bom exemplo aos meus filhos e continuar a falar sobre livros no meu blogue, um projeto com treze anos que tanto prezo. Dizem que o “desmame” completo ocorre passados três meses. Não parece muito, pois não? Até lá, é tentar viver autenticamente e voltar às origens.

Literatura Norte-Americana

O Meu Inimigo Mortal

Conheci Willa Cather através das redes sociais. Nunca tinha ouvido falar dela e, numa pesquisa mais pormenorizada, descobri que foi uma importante escritora americana do início do século XX, que concentrou a sua obra sobretudo no tema dos pioneiros e no da sociedade norte-americana que entretanto se estava a formar.

No seu pequeno O Meu Inimigo Mortal (1926), Cather narra a história de Myra, uma jovem de boas famílias que, ao contrário do desejo do tio, decide trocar o seu bem-estar pelo amor ao fugir com Oswald, um rapaz pobre que a arrebata. Voltamos a encontrar o casal 25 anos depois num hotel barato numa zona artística de Nova Iorque, numa situação precária, decadente e infeliz.

Apesar de curta, esta novela é bastante curiosa porque, a meu ver, trata do tema do arrependimento. Na sua juventude, Myra achava que sabia o que era melhor para si e, após enfrentar tudo e todos, consegue levar a sua vontade avante para se dar conta, anos mais tarde, de que cometera um erro monumental. Myra não gosta de ser pobre e culpa o marido devotado pela vida que tem e que, no fundo, ela escolheu. É uma mulher infeliz e torna a vida dos que a rodeiam igualmente infeliz.

Gostei deste livro embora o tenha achado parecido com a primeira obra que li de Cather, Uma Mulher Perdida (1923). O tema é quase idêntico: mulheres jovens, casadas com homens que não amam e aparentemente presas a uma vida dura que não as satisfaz. O seu destino é quase uma fatalidade, o que pode não apenas ser frustrante para elas, mas também para o leitor que dá consigo a pensar: “Mas porque é que elas não fazem nada para alterar a sua condição?”

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A Luz em Agosto

Sempre tive curiosidade em ler William Faulkner. Dois dos seus livros mais famosos, A Luz em Agosto e O Som e a Fúria, fazem parte de duas coleções que fiz: a velhinha Biblioteca Visão/Novis; e a mais recente Livros RTP. Surgiu a oportunidade de ler A Luz em Agosto devido à leitura conjunta do blog “O que vi do mundo”, e não hesitei.

A Luz em Agosto (1932) conta a história de Joe Christmas, um rapaz mestiço abandonado num orfanato e adoptado aos cinco anos por uma casal fanático religioso. Christmas não tem uma vida fácil. Vive no Sul dos Estados Unidos, no período entreguerras, onde o racismo (Jim Crow), a Lei Seca e o fanatismo cristão imperavam abertamente e guiavam as vidas da maioria das pessoas. Após alguns episódios de violência, acaba por fugir e torna-se um nómada, sem eira nem beira.

Este livro é um autêntico festival de violência física e psicológica. Todas as personagens são párias da sociedade, todas parecem esquecidas por Deus, e todas têm problemas que não sabem como resolver. As suas adversidades advêm da história e da cultura do local onde estão inseridas. A meu ver, Faulkner quis alertar de uma forma crua, rude e impiedosa para o que se passava no Sul dos Estados Unidos. Por exemplo, o que faz com que Christmas seja perseguido e perseguidor é o facto de achar que tem “sangue negro” e reagir conforme isso é recebido pelos outros (e por ele próprio).

Acredita-se que Faulkner baseou a sua história no Evangelho Segundo São João, tendo Christmas representado a figura de Jesus Cristo. É óbvio que algumas personagens são baseadas em figuras religiosas, o que dá uma sensação mais profunda de injustiça e desespero à história.

A Luz em Agosto não é para todos. Quando estava a lê-lo achava-o muito violento, uma realidade para a qual por vezes me custava regressar. Contudo, agora que já o terminei e digeri, creio que se trata de uma murro no estômago do leitor cuja dor permanece durante algum tempo porque não é fácil esquecê-la. Aliás, não é de admirar que a Academia Sueca lhe tenha concedido o Nobel da Literatura em 1949. Se hoje em dia o livro é impactante, faço ideia nos anos 30 do séc. XX.

Literatura Norte-Americana

O Céu É Dos Violentos

Flannery O’Connor (1925-1964) foi uma escritora norte-americana conhecida maioritariamente pelos seus contos. Estes tiveram tanta importância que hoje em dia o nome da autora dá título ao prémio de contos mais prestigiante dos Estados Unidos, o Flannery O’Connor Award for Short Fiction. No entanto, O’Connor também escreveu dois romances que eu já tive oportunidade de ler. Esta publicação é sobre o segundo, entitulado: O Céu É Dos Violentos (1960).

Flannery O’Connor nasceu na Georgia no seio de uma família irlandesa católica. O seu pai morreu prematuramente de lúpus, pelo que ela e a mãe foram viver para a quinta Andalusia, em Milledgeville, entretanto convertida em museu. O’Connor frequentou a escola pública local e mais tarde ingressou na Universidade Estatal Para Mulheres da Georgia, onde estudou sociologia e literatura inglesa. Começou a escrever contos para revistas e a ser notada pelos seus pares, especialmente por Andrew Lyttle, mais tarde seu editor e amigo.

É impossível desassociar a fé religiosa de O’Connor da sua literatura. Sendo católica praticante, escreveu mais de cem críticas literárias de textos religiosos para dois jornais diocesanos da Georgia. Esta devoção é patente nos seus dois romances.

Em O Céu É Dos Violentos conhecemos Mason Tarwater, um velho evangelista afastado da sociedade que tem como preocupação principal batizar e converter. Autodenomina-se profeta e quando a sua irmã e restante familia morrem num acidente de viação decide adotar o seu sobrinho-neto bebé para fazer dele o seu discípulo. No entanto, Rayber, o seu sobrinho adulto que também sobreviveu ao acidente, tenta resgatar o bebé, sem êxito. Francis é assim educado pelo profeta que lhe faz uma “lavagem cerebral” e o obriga a prometer que o enterra em solo sagrado quando morrer. Ora, Tarwater morre e Francis, após tentar cumprir a promessa, resolve pegar fogo à casa e ao velho, e fugir ao encontro do seu tio Rayber. Este recebe-o de braços abertos, disposto a ajudá-lo a esquecer o passado e os ensinamentos de Tarwater, contudo, Francis já está muito doutrinado e influenciado, percebendo que é muito difícil, senão mesmo impossível, libertar-se.

Para mim, este livro tem como temática o fanatismo religioso e como este afeta uma pessoa desde tenra idade. No entanto, e ao mesmo tempo, Flannery O’Connor expressa através deste fanatismo as suas convicções religiosas e a razão pela qual pensa que o catolicismo deve ser transmitido e assimilado. Francis teve uma vida rude, árdua e custosa para poder mostrar aos outros os ensinamentos de Cristo e, assim, salvá-los. Sacrificou-se, tal como Jesus e os apóstolos, por uma causa maior. Foi vítima de violência, de negligência e de maus tratos para poder cumprir o seu desígnio. Foi quase “um mal necessário” para salvar o resto da comunidade de uma vida secular e sem sentido.

O título da obra refere-se a um versículo do Evangelho Segundo S. Mateus (11:12): “Desde os dias de João Baptista até agora, o Reino dos Céus sofre violência, e violentos são os que se apoderam dele.” Estas palavras foram várias vezes interpretadas, sendo uma das explicações a de que quando se comete um ato de violência com vista ao bem maior, a vontade de Deus, esse ato de violência é justificado. Há uma cena óbvia no livro em que tal acontece, quando Francis ao tentar batizar Bishop o afoga sem querer. Trata-se de um homicídio acidental, mas, como o objetivo era o de batizar a criança para que ela entrasse no céu e se convertesse ao catolicismo, o ato foi justificado.

Há muito mais a dizer sobre O Céu É Dos Violentos. Na minha opinião, Flannery O’Connor é uma escritora brilhante que, em poucas páginas, nos faz sentir inúmeras emoções ao mesmo tempo e nos faz duvidar do que pensamos. As suas histórias são violentas, agressivas, cruéis, obscuras e satíricas. Não queremos parar de lê-las nem de nos espantarmos com a maturidade da sua escrita. Só temos pena que não tenha escrito mais pois, tal como o seu pai, o lúpus tirou-lhe a vida aos 39 anos. Ficam os contos e os livros que, a meu ver, deveriam ser mais conhecidos.

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Anne’s House of Dreams

AnnesHouseOfDreams

Quando era pequena via muitos desenhos animados na televisão: Kissyfur, Pif e Hercule, Inspector Gadget, As mulherzinhas, Zorro, A Floresta Verde, Joaninha, Bocas, e, é claro, Ana dos Cabelos Ruivos.

Só relativamente mais tarde é que descobri que a série animada Ana dos Cabelos Ruivos era uma adaptação de uma série de literatura juvenil da autora canadiana, Lucy M. Montgomery. O primeiro livro, Ana dos Cabelos Ruivos (1908), está traduzido em português, os restantes não.

Esta série acompanha a vida de Anne Shirley, uma orfã de 10 anos que é enviada por engano para casa dos irmãos Marilla e Mathew Cuthbert e que acaba por ficar devido à sua atitude positiva perante a vida e ao seu bom coração. Anne mostra um grande potencial e os irmãos, já com alguma idade, incentivam-na a frequentar a escola para a jovem conseguir ter um futuro melhor do que aquele que em princípio lhe está reservado. A partir daqui seguimos toda a vida de Anne até aos seus 50 anos.

Não direi muito mais para não estragar os livros, mas refiro que neste em particular, Anne´s House of Dreams (1917), Anne está a iniciar o seu percurso de jovem mulher adulta. Pelo caminho vive coisas boas e más, e perde e ganha amizades e amores. A sua atitude perante tudo o que lhe ocorre é fascinante e, apesar de mais madura, conserva sempre o positivismo, a bondade e a inteligência a que nos tem habituado. É um autêntico prazer fazer parte do seu mundo. Quando terminamos o livro ficamos com a sensação de que se a nossa realidade tivesse mais pessoas como Anne, seríamos todos um pouco mais felizes.

Já li os primeiros quatro livros da série e lerei certamente os quatro que faltam. Visito esta história adorável uma vez por ano, normalmente no verão, e espero voltar a fazê-lo em 2021. É a leitura perfeita para quando queremos submergir em algo bonito que nos transporte para um “mundo ideal” no qual muitos de nós, eu incluída, não nos importaríamos de viver. Recomendo.